A vida era um tabuleiro de xadrez, organizado, cada peça em seu devido lugar, pronto para uma partida a qualquer momento. Eis que então, não sei se fora convidado ou uma visita indesejada, um rival diferente sentou-se à mesa. Só que ele não queria jogar. Não estava interessado no fluxo, na ordem. Bagunçou o tabuleiro, desordenou as peças. Algumas foram até lançadas para fora da arena. E por mais que tentasse iniciar uma partida, era impossível. O jogo estava incompleto e fora do lugar. Algumas tímidas tentativas de colocar algumas peças no lugar foram imediatamente frustradas com a pesada mão do adversário.
E assim ficou, por muito tempo...
Ignorar a presença dele de nada adiantou. Ele estava lá, às vezes silencioso, porém contemplativo. Em outras ocasiões era tão incomodo, que seus movimentos faziam tudo tremer, ameaçando derrubar mais peças. Assustá-lo também fora em vão. Ele reagia a todas as tentativas e conseguia contornar a situação, permamecendo sentado em sua cadeira. Algum tempo depois, sua presença já era até tolerada, falsamente tolerada assim por dizer. Era cômodo, mais fácil não reagir e apenas aceitar...
Cada vez que uma peça era erguida ele emitia um grito. Um ensurdecedor grito. E assim a peça era devolvida a seu cativo lugar. Eis que um dia, o outro jogador decidira tentar algo diferente. Estendeu sua mão para pegar um cavalo e imediatamente o rival se posicionou, pronto para prazerosamente berrar e assustá-lo. A feição de vitória em seu rosto, já acostumado com a desistência do outro, era evidente. Todavia desta vez fora diferente. Ele persistiu e colocou a peça em seu devido lugar, ao fundo de gritos desesperados. E assim procedera. Peça, por peça. Obviamente não fora fácil. Ele tremia, algumas vezes exitava, contudo, persistiu até o fim. Ele entendeu que o rival se estabelecera na base do medo, da ameaça. Ele não faria nada além dos sustos. O letal era permanecer naquela mesma posição, vendo as horas passarem aos pulos, envelhecendo enquanto poeira cobria o tabuleiro e as peças. Algumas já estavam quase irreconhecíveis com o pesar do tempo. Porém agora elas estavam no lugar. Modificadas, mas no lugar.
Um som novo surgiu. O afastar da cadeira, rangendo contra o chão. Finalmente ele partiu. Alívio no peito. Mas e agora? Tanto tempo sem jogar que as regras foram esquecidas, ou soam incompletas. Ele soa enferrujado, mas sedento por jogar. E assim recomeçou, com regras atropeladas, funções alteradas, mas aos poucos ele está reaprendendo a se comportar e logo, assim esperamos, pronto para ser um adversário de respeito.